Presídios: não é crise, é ausência total do Estado

8 de fevereiro de 2017
Carolina Vilaverde
Desde os primeiros dias de 2017, assistimos a uma onda de violência e brutalidade em presídios no Norte e Nordeste, que deixou dezenas de presos mortos. Em 1º de Janeiro, uma rebelião que durou 17 horas no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, terminou como o segundo maior massacre da história do sistema prisional brasileiro, com 56 detentos assassinados. Dias depois, outra chacina deixou pelo menos 31 mortos na penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima. O Rio Grande do Norte também sofreu com uma rebelião, que durou mais de 72 horas na penitenciária de Alcaçuz, na região metropolitana de Natal.
Em entrevista ao IVH, Alessandra Teixeira, professora adjunta da Universidade Federal do ABC (UFABC) e pesquisadora do Observatório de Segurança Pública da UNESP, comenta o atual cenário das prisões brasileiras e explica por que a disputa entre as facções dentro dos presídios demonstra uma ausência total do Estado dentro destas instituições.
IVH: A palavra “crise” é adequada para descrever a atual escalada de violência que temos acompanhado nos presídios do Norte e Nordeste, que resultou em várias rebeliões e na morte de dezenas de presos?
 
Alessandra Teixeira: A noção de crise tende a não ser a mais adequada, pois confere uma falsa ideia de que em algum momento da nossa história das prisões houve uma experiência exitosa, e que essa experiência teria entrado em crise. Na verdade, a gestão das prisões e o modelo de repressão e controle no país se basearam, desde sua origem, em dois elementos que lhe serão estruturantes: a violência (institucional, mas também difusa) e a corrupção, que se dá em todos os níveis (da gestão cotidiana do crime, pelos agentes policiais, à gestão no interior das prisões, pelos agentes de custódia).
A combinação desses dois elementos, além de produzir o retrato dantesco que exibem as cadeias brasileiras, esteve na base da formação de grupos ou facções prisionais, que nascem desse contexto a partir da década de 1980 no Rio de Janeiro e de 1990 em São Paulo, se reproduzindo e se fortalecendo no esteio de relações espúrias com o próprio Estado, e se expandindo para fora dos limites da prisão.
Essa expansão que, insisto, não se dá apenas nas prisões, mas também e sobretudo para fora da prisão, junto aos mercados criminais urbanos, que operam o varejo das economias criminais de drogas e de mercadorias roubadas, tem alcançado outras unidades da federação, e explodido em disputas territoriais ferozes, tais como as que assistimos nos presídios no Norte e no Nordeste no mês de janeiro.
É importante observar que por trás desses episódios bárbaros não estiveram as configurações “clássicas” das mobilizações de presos que se traduzem nas tradicionais rebeliões e motins, onde o Estado é interpelado simbolicamente, denunciando-se mazelas e apresentando-se reivindicações. Nesses dramáticos episódios de violência de janeiro, o Estado não aparece como alvo, interlocutor ou o que quer que seja; trata-se de uma disputa sangrenta entre presos, grupos rivais, o que denota a completa ausência da presença (material e moral) do Estado nas prisões. Essa ausência, contudo, não deve ser interpretada como deficiência, mas dentro de uma racionalidade, de um modo de governar, que remete ao início da minha resposta.
IVH: Dados do Ministério da Justiça mostram um salto impressionante na população prisional no Brasil: passamos de 232,8 mil presos no ano 2000 para 622,2 mil em 2014. Como se estruturaram as prisões no Brasil e por que prendemos tanto?

AT: O modelo adotado pelo Brasil e na maior parte do mundo é o modelo progressivo, em que o condenado progride de regime fechado, gradativamente, à liberdade. Esse modelo foi adotado em boa parte do mundo já no século XIX, substituindo modelos de isolamento absoluto e integralmente fechados, como o modelo de Auburn. De todo o modo, nas últimas décadas tem-se intensificado a punitividade nos sistemas penais do Ocidente, fruto do abandono de ideais ressocializadores que vigoraram durante o welfare state, e como resposta populista de diferentes governos ao sentimento de insegurança da população. Frente às crises econômicas e sociais que se agravam, intensifica-se o controle e a punição de maneira seletiva, reproduzindo estigmas de raça e classe. Resultado dessas abordagens é o fenômeno do encarceramento em massa que tem sido a marca das políticas de repressão e controle desde os anos 90. Ao lado desse fenômeno, tem-se restringido gradativamente direitos civis de acusados e condenados, o que tem estendido o tempo de aprisionamento e contribuído para agravar o encarceramento em massa.
O Brasil é lamentavelmente um dos 4 países que mais encarcera no mundo, tendo aderido ao fenômeno do aprisionamento em massa também a partir dos anos 90. Diante das condições particularíssimas de violência, corrupção e absoluta precariedade material do sistema prisional, esse fenômeno (o encarceramento em massa) é ainda mais grave e perturbador em nosso país, constituindo mais um elemento de combustão para a situação em que nos encontramos.

PARA SABER MAIS

IVH: É possível pensar a reestruturação do sistema prisional sem pensar em uma reforma também das polícias e do sistema de Justiça?

AT: O aprisionamento massivo e, sobretudo, seletivo, no Brasil, é resultado de uma política de segurança pública que não opta pelo combate ao crime (que implicaria em ações de inteligência junto aos verdadeiros agentes estratégicos das economias criminais – os grandes traficantes e os grandes receptadores, ou seja, uma atuação policial que desmontasse a verdadeira cadeia do tráfico e da receptação), mas que opta pela prisão dos atores mais periféricos dessas economias. Uma política de segurança pública que constrói seus indicadores de eficiência em números absolutos de prisões, que ocorrem em sua imensa maioria a partir de abordagens policiais profundamente preconceituosas orientadas por estereótipos de raça e classe, e baseadas no uso ilegal da força. Mas esse encarceramento também é resultado de atuação do sistema de justiça criminal que cada vez se orienta mais na linha de um populismo penal, no agravamento de penas e regimes, na restrição e violação de direitos individuais, sempre dirigidos de modo seletivo à clientela preferencial do sistema penal, o que uma rápida conferida junto às estatísticas penitenciárias pode comprovar.
IVH: A proposta apresentada pelo então Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, de construir um novo presídio por estado, é uma boa solução para os problemas do sistema prisional brasileiro?

AT: No ritmo que se aprisiona no país, seriam necessários dois presídios novos por mês em cada unidade da federação para se cumprir as recomendações da ONU. Uma proposta vazia de significado e de eficácia.
IVH: Uma boa parcela da sociedade brasileira ainda brada que “bandido bom é bandido morto”. Como discutir uma dignificação do sistema prisional nesse contexto?

AT: A dignificação somente poderia vir numa sociedade que prezasse minimamente pelos direitos e garantias civis, reconhecendo na dignidade do outro a dignidade de si, ou seja, reconhecendo ao menos dentro da construção liberal que consagra as liberdades individuais, o princípio da igualdade. Em nossa sociedade, onde a escravidão prolongada forjou as subjetividades e as relações interpessoais a ponto de imprimir uma marca indelével no tecido social, é difícil pensar num cenário emancipador. A Constituição de 1988 avançou formalmente nesse sentido, mas os acontecimentos políticos e sociais dos últimos meses têm nos levado a concluir o contrário.
Artigo originalmente publicado no site do Instituto Vladimir Herzog http://vladimirherzog.org

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