Yom Kipur: O Dia do Perdão judaico e o genocídio em curso – Por Amanda Azulay
Na noite do dia 1º de outubro de 2025, pouco antes de completar o segundo ano da invasão por terra do Estado de Israel em Gaza, iniciado no dia 27 de outubro de 2023, o mundo acompanhava a Flotilha da Liberdade Global que seguia para terras palestinas com o objetivo de romper o cerco ilegal israelense, imposto há 18 anos, e cumprir a missão de solidariedade com as entregas de medicamentos, alimentos, muletas e demais suprimentos ao povo. Quanto mais os barcos se aproximavam, também mais próximos ficavam do bloqueio israelense, com seus navios e aviões militares e suas ameaças aos voluntários da ajuda humanitária. Como de praxe, o exército israelense com sua inteligência vil e militar interceptou alguns dos mais de 40 barcos, sequestrando ativistas de cerca de 26 nacionalidades, incluindo 11 brasileiros, dentre eles, o ativista Thiago Ávila, a vereadora de Campinas-SP pelo PSOL, Mariana Conti e deputada Luizianne Lins, PT-CE.
Tudo isso ocorre após mais de 8 décadas de limpeza étnica na região e de mais de 720 dias do genocídio em curso no qual o mundo testemunha os crimes cometidos pelo Estado de Israel, que se reafirma e engrandece com o apoio dos EUA e das principais potências europeias. Com ataques e bombardeios direcionados aos hospitais, escolas e residências e os assassinatos do povo palestino, que incluem crianças e bebês diretamente, nos últimos meses a força israelense também faz uso da arma de guerra mais perversa atual: a fome do povo palestino. Da mesma forma, a interceptação ocorreu mesmo enquanto a Corte Internacional de Justiça, a maior autoridade judicial, com suas decisões provisórias do caso aberto pela África do Sul contra Israel pelo crime de genocídio, declarou a proibição do estado em impedir qualquer ajuda humanitária para a Faixa de Gaza.
Durante a mesma madrugada em que ocorria o sequestro dos ativistas em águas internacionais, ou seja, fora da jurisdição israelense, judeus de todo o mundo – sem considerar os fusos horários diversos – celebravam o dia mais sagrado e espiritual do calendário judaico: o Dia do Perdão, que em hebraico se traduz como “Yom Kipur”. Esse dia, que de acordo com os livros do Antigo Testamento (a Torá), apesar de ser considerado difícil pelas diversas obrigações que os judeus devem cumprir, também é entendido como um dos mais alegres, segundo a religião.
É esse paralelo que o artigo busca tratar, com ênfase nas contradições da ideologia supremacista sionista, que pretende, ainda, convencer as pessoas que a Palestina é a terra de Israel dada ao povo judeu por Deus, confundindo, inclusive, a religião judaica com o projeto racista que se desenrola há um século.
O que é o Dia do Perdão judaico? Qual a sua origem?
De forma resumida, a compreensão judaica é que o Yom Kipur – O Dia do Perdão é oferecido pela bondade de Deus que dá a possibilidade de limpar a alma de todos os erros cometidos naquele ano, de forma completa, mudando maus decretos e o julgamento para o futuro. A partir, portanto, da TESHUVÁ – arrependimento, do jejum e rezas, essa purificação serviria também para evitar o acúmulo de pecados ao longo da vida, com o perdão anual por todos os erros e pecados cometidos durante aquele período. Assim, é o dia de maior conexão com Deus, conforme a fé judaica.
Segundo o Antigo Testamento, a origem da data remonta a seguinte história: após 49 dias da saída do povo judeu do Egito, ao chegar ao Monte Sinai, todos escutaram os mandamentos divinos diretamente da voz de Deus, sendo os dois primeiros: 1- “Eu sou o Deus que os tirou do Egito”; 2- “Não terás outros deuses perante mim, nenhuma estátua de nada entre os céus e a terra”. Logo após esse recebimento oral, Moisés, o líder do povo durante o êxodo, subiu ao Monte Sinai, sozinho, para buscar a Torá física e informou que demoraria 40 dias para retornar. No último dia, contudo, achando que ele não desceria, o povo construiu um bezerro de ouro declarando-o como o Deus que os tirou do Egito. Ao chegar e ver o que tinha acontecido, no dia seguinte, Moisés quebrou as primeiras tábuas da lei e, no início do último mês do calendário judaico, antes do Ano novo, subiu de novo ao Monte Sinai, dessa vez com objetivo de pedir perdão a Deus pelo pecado de idolatria. Novamente, após 40 dias, ele desceu com o perdão divino e as segundas tábuas, entregando definitivamente a Torá física e suas leis ao povo judeu. Assim, até os dias de hoje, a celebração do Yom Kipur além de representar a bondade de Deus, se associa ao recebimento das leis divinas e, por isso, é considerado um dia profundamente especial para os judeus.
O que é e o que simboliza o bezerro de ouro?
Conforme uma história transmitida oralmente na tradição judaica, além do fato de representar a idolatria, ele também simbolizaria a liberdade. Assim, sendo o bezerro um touro ou uma vaca em sua fase inicial da vida, representaria a tranquilidade de não se ter obrigações perante ao outro ou perante a Deus, a ausência da interferência divina, e a possibilidade de usufruir e fazer o que quiser no mundo material.
A metáfora se desenrola aos dias atuais, como um desafio a ser superado, especialmente de 3 formas: primeiro, quando há o desejo da liberdade total, a vontade de viver sem regras, sem as obrigações da Torá, sem valores e direcionamento. Da mesma forma, como a própria sociedade nos impõe regras e leis, também diz respeito a ideia de coletivo, já que parte da noção de que ter uma vida com limites diz sobre o convívio com os outros.
Segundo, quando buscamos justificar de qualquer forma as nossas atitudes, mesmo quando erramos e transgredimos as leis, tanto divinas quanto humanas. Aqui, resta claro também o respeito que se deve ter pelo outro, já que a mensagem é: quando cada um faz o que quer, tudo está perdido.
Em terceiro e último lugar, quando não aguardamos e agimos por impulso, a partir da raiva, podendo acabar destruindo tudo. Nesse sentido, a ideia é que no impulso se age sem reflexão, sem se perguntar as consequências das próprias atitudes. E, assim, pode-se acabar falando mal, humilhando, agredindo e até matando seu semelhante.
O pecado do bezerro de ouro, portanto, transmite a mensagem da importância da conexão com Deus único, que, conforme se verá abaixo, se dá através de rezas e pelo cumprimento das obrigações por “Ele” dadas a todo o judeu.
Os mandamentos divinos e as leis civis
Para falar dos mandamentos e leis de Deus conforme a narrativa bíblica, faz-se necessário entender o que seria a ideia de povo escolhido que, de acordo com os livros judaicos, é bem diferente do que se dissemina por aí, por incrível que possa parecer.
Em realidade, sem detalhes, o que aconteceu parece ter sido o inverso: o que a bíblia nos conta é que, depois da tentativa de apostar em diversos outros povos do mundo para que pudessem ser a “luz” entre as nações, como povo diretamente conectado a Deus, somente o povo judeu consentiu com a ‘oferta’. Por isso, a religião judaica entende que, ao aceitar ser o povo que traria a luz para o mundo, do qual viria messias e a salvação da HUMANIDADE, o povo judeu aceitou também seguir mais obrigações do que qualquer outro povo ou religião.
É por isso que, enquanto no catolicismo há a obrigação com relação aos 10 mandamentos das tábuas da lei, a todo judeu acredita-se ser necessário o cumprimento de 613 obrigações – as mitzvot, em hebraico. Dentre essas 613 leis, porém, algumas delas não podem ser realizadas nos dias atuais e o peso entre elas também é distinto, conforme o julgamento divino.
Três delas, no entanto, são consideradas as mais importantes ainda hoje, sendo as maiores proibições e transgressões que um judeu pode cometer: Em primeiro lugar, a IDOLATRIA: de acordo com a fé judaica, a primeira religião monoteísta da humanidade, a idolatria diz respeito à ideia de que Deus é UM. Essa noção, assim, representa ao povo judeu a proibição de adorar santos, estátuas e, inclusive, um pedaço de terra; Em segundo lugar, as RELAÇÕES PROIBIDAS: essa proibição se relaciona a obrigação de todo judeu perpetuar o povo considerado luz entre as nações, sendo, portanto, uma grave transgressão tanto relações conjugais entre judeus e não judeus quanto relações homossexuais ou homoafetivas (Alô, galera do discurso “maior parada gay do mundo ocorre em Tel Aviv”); Em terceiro, COMETER ASSASSINATO: é expressamente proibido, de acordo com as tábuas da lei, cometer o ato de assassinato com seus semelhantes (que na narrativa bíblica é lido como pessoa humana, e não como pessoa judia).
Com relação a importância dada também as leis da sociedade civil, cabe destacar que o Estado de Israel até hoje não possui uma constituição escrita e promulgada, mas somente leis básicas. E, no que tange as leis israelenses, suas normas derivam dos livros religiosos do Antigo Testamento e das leis que vigoravam antes de 1948, tanto do Império Otomano quanto do Mandato britânico, e que não contradizem as leis religiosas aprovadas pelo Estado Judeu. Quanto a isso, uma análise superficial dessas leis, disponíveis no próprio site do governo israelense, permite compreender o status de civis de segunda categoria que os palestinos foram e estão submetidos desde a fundação do Estado de Israel.
Paradoxo em questão
O Estado de Israel, fundado em maio de 1948 a partir da proposta de partilha da ONU das terras palestinas – que nunca ocorreu de verdade – e após uma guerra já desproporcional, representou o início da catástrofe do povo originário da região. Com a limpeza étnica em curso muitas décadas antes, a invasão sionista que ocasionou na expulsão de mais de 750 mil palestinos, em mortes, na ocupação ilegal e no roubo das terras, da cultura e língua dos palestinos, se deu com o advento do último estado colonial e racista do século XX, que continua em voga.
Ainda que historicamente seja possível comprovar como isso se deu, ou seja, de forma totalmente associada às ideias nacionalistas, imperialistas, capitalistas e racistas do mundo ocidental, alguns sionistas pretendem convencer a todos, inclusive pessoas de fé judaica, que tudo isso faz parte de um plano divino e que foi e é feito conforme a vontade de Deus e sua conexão com o “povo“ que seria a luz entre as nações.
Paradoxalmente, o projeto colonial que pretende hoje convencer o mundo que seus objetivos fazem parte da salvação da humanidade, agora contra o terrorismo, transgride as três maiores proibições da religião judaica, incorporando o bezerro de ouro até os dias atuais, como se demonstrará.
Inicialmente, lembremos a ideia de Deus como UM, que remete a proibição judaica de adorar qualquer coisa que não a “Ele” entre os céus e a terra, o que inclui a adoração por territórios. Isso é justamente o que o projeto sionista busca desde sua fundação moderna: a posse das terras palestinas, de forma completa, custe o que custar. Assim, o projeto que se realizou a partir do roubo, da humilhação, agressão e, inclusive do genocídio de um povo – que deveria ser encarado como seu semelhante – deixa claro a transgressão da terceira maior proibição judaica: cometer assassinato.
Ademais, confirmando que o bezerro de ouro remonta aos dias atuais também quando se justifica os próprios erros e pecados – em vez de se arrepender de forma genuína e ponderar as consequências de seus atos sobre os outros – , os representantes do Estado que quer ser totalmente judaico desde o início da sua idealização, tal qual uma criança mimada, além de se considerarem acima de qualquer lei (divina ou humana), buscam justificar seus crimes – mesmo quando analisados frente ao Direito Internacional e a Declaração Universal de Direitos Humanos – a partir da noção totalmente imaginária de inimigo por todos os lados e da necessidade da criação de um estado que garanta a segurança do ‘povo’ judeu. Ironicamente, o Estado de Israel é hoje a principal razão da insegurança das pessoas judias e do antissemitismo que cresce em proporção ao atual nazismo israelense.
Considerações finais
O contraste entre os valores do Yom Kipur e as ações brutais do Estado de Israel escancara a contradição fundamental entre a fé judaica e o projeto político sionista. Enquanto o judaísmo, como analisado, prega o arrependimento, a justiça e o respeito à vida humana, o colonialismo israelense atua em flagrante desrespeito aos princípios mais sagrados da própria religião que diz representar. Ao promover um genocídio em nome de uma suposta promessa divina, o Estado de Israel não apenas viola os direitos humanos e o direito internacional, mas também sequestra a espiritualidade judaica, distorcendo-a para justificar crimes contra a humanidade. Reconhecer essa diferença é essencial para romper com a falsa equivalência entre judaísmo e sionismo, denunciar a limpeza étnica na região e fortalecer a solidariedade internacional com o povo palestino.
*Amanda Azulay Campos é Psicóloga, especialista em Psicologia Jurídica e pós-graduanda lato sensu em Direitos humanos. Pesquisa a questão da Palestina e sobre violências de Estado.
Publicado originalmente na Revista Fórum